quinta-feira, 17 de abril de 2014

O meu tio Zeca

O meu tio Zeca era um homem bem disposto e cheio de energia. Adorava ir à pesca, fazer campismo, beber umas bejecas com os amigos e ia a muitas excursões com a minha tia, portanto parecia ter uma saúde de ferro. Mas um dia, a minha tia Maria dos Anjos, a pedido insistente da filha, a minha prima Martinha, aconselhou-o:
- “Zeca, vais fazer 70 anos, está na altura certa para ires fazer um check-up completo no médico.”
- “Ora, para quê, se me estou a sentir bem?”
- “Apenas por uma questão de prevenção, que deve ser feita agora, quando ainda te sentes com forças e podes ter algum problema que não saibas - disse a minha tia toda cuidadosa.
Então meu tio Zeca, marcou uma consulta e foi ao médico. Este, sabiamente, mandou-o fazer testes e análises de tudo o que poderia ser feito e que o plano de saúde cobrisse.
Duas semanas mais tarde, o médico disse que os resultados estavam muito bons, mas tinha algumas coisas que podiam ser melhoradas. Então receitou:
Comprimidos Narvasc para o colesterol,
Losartan para o coração e hipertensão,
Metformina para evitar diabetes,
Polivitaminas para aumentar as defesas.
Norvastatina para a pressão arterial e
Desloratadina para prevenir alguma alergia.
Como eram muitos medicamentos, tinha que proteger o estômago, então ele indicou
Nexus e um diurético para os inchaços.
O meu tio Zeca foi à farmácia e gastou boa parte da sua reforma em várias caixas requintadas de cores sortidas.
Nessa altura, como ele não conseguia lembrar-se se os comprimidos verdes para a alergia deviam ser tomados antes ou depois das cápsulas para o estômago e se devia tomar os amarelos para o coração antes ou depois das refeições, voltou ao médico.
Ele, sempre prestável, deu-lhe uma caixinha com várias divisões, mas achou que o meu tio estava tenso e um tanto contrariado.
Receitou-lhe, então, Alprazolam e Sucedal para dormir.
Naquela tarde, quando ele entrou na farmácia com as receitas, o farmacêutico e os seus funcionários aplaudiram a sua adesão ao “clube dos fármacos”.
Mas o meu tio, em vez de melhorar, foi piorando. Ele tinha todos os medicamentos num armário da cozinha e quase já não saía de casa, porque passava praticamente todo o dia a tomar as pílulas e a sentir “coisas estranhas”.
Dias depois, o laboratório fabricante de vários dos medicamentos que ele usava, deu-lhe um cartão de “Cliente VIP”, um termómetro, um frasco esterilizado para as análise de urina e um lápis com o logotipo da farmácia.
Passado algum tempo, o meu tio teve azar e apanhou uma gripe. A minha tia Maria dos Anjos, como de costume, obrigou-o a ir para a cama, mas, desta vez, além de lhe dar o habitual chá de limão com mel, chamou também o médico.
Ele garantiu que não era nada de grave, mas prescreveu Tapsin para tomar durante o dia e Sanigrip com Efedrina para tomar à noite.
Como estava com uma pequena taquicardia, receitou Atenolol e um antibiótico, 1 g de Amoxicilina a cada 12 horas, durante 10 dias.
Apareceram fungos e herpes e a minha tia telefonou-lhe aflita, mas ele sempre eficiente, disse para ela ir à farmácia e comprar Fluconol com Zovirax que não era preciso receita médica.
Para piorar a situação, o tio Zeca começou a ler as bulas de todos os medicamentos que tomava e ficou a saber todas as contra-indicações, advertências, precauções, reações adversas, efeitos colaterais e interacções médicas.
Leu coisas terríveis! Não só poderia morrer, mas poderia ter também arritmias ventriculares, sangramento anormal, náuseas, hipertensão, insuficiência renal, paralisia, cólicas abdominais, alterações do estado mental e um monte de coisas terríveis.
Com medo de morrer, chamou de novo o médico, que lhe disse para não se preocupar com essas coisas, porque os laboratórios só colocavam essas advertências para os isentar de qualquer culpa caso alguma coisa corresse mal, mas ele estava muito bem medicado, por isso não havia nada a recear.
- Calma, senhor Zeca, não fique aflito - tranquilizou o médico, enquanto prescrevia uma nova receita com um antidepressivo Sertralina com Rivotril 100 mg. E como o meu tio estava com uma dor nas articulações, deu-lhe Diclofenac.
Nessa altura, sempre que o meu tio recebia a magra reforma, ia direitinho para a farmácia, onde já tinha sido eleito cliente VIP.
Chegou uma altura em que o dia do pobre do meu tio Zeca não tinha horas suficientes para tomar todas as pílulas, portanto, já não dormia, apesar das cápsulas para a insónia que lhe tinham sido receitadas.
Ficou tão mal que um dia, e conforme já tinha sido advertido nas bulas dos remédios, morreu.
No funeral havia muita gente que lamentava as doenças do meu tio, mas quem mais chorava era o farmacêutico.
Agora a tia Maria dos Anjos diz que felizmente mandou o meu tio para o médico na altura certa, porque se não, com certeza, ele teria morrido antes.

Qualquer semelhança com factos reais (não) será «pura coincidência»



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